Tenho predisposição hereditária para aterosclerose. Porisso costumo, conforme orientação médica e da mídia pseudo-científica formadora de opinião, beber uma taça de vinho, preferencialmente tinto, com alguma frequencia. Acabei de tomar, durante minha frugal refeição noturna, uma dose generosa de um Lambrusco Cella. Espumante italiano adocicado que faz sucesso em cerimônias de casamento de minha cidade natal há alguns anos, é provavelmente execrado por qualquer enófilo com um mínimo de conhecimento da matéria. Por falar nisso:
ENÓLOGO - expert em cultura da vinha e do preparo do vinho, geralmente graduado e trabalhando na fabricação do vinho.
ENÓFILO - qualquer amante e estudioso do vinho.
SOMMELIER - profissional especializado responsável pela adega do restaurante, desde a compra, armazenamento e elaboração da carta de vinhos da casa.
Quase sempre que me encontro em tão nobre objetivo medicinal, vêm-me à cabeça uma questão existencial : Quando termina o prazer dado pelo conhecimento mundano e começa a escravidão do profundo saber ? Explico : a imensa maioria dos vinhos que tomo são absolutamente populares. Divirto-me com e aprecio de verdade quase qualquer Malbec, e virtualmente qualquer tinto francês ou italiano. Nunca provei vinhos cuja garrafa custasse muito dinheiro, e, se o fiz, já não lembro mais. Sou uma completa negação para dizer se é encorpado, frutado, amadeirado, ou para provar o vinho naquele ritual cômico e burlesco a que o garçom atencioso ( ou gozador ) às vezes me obriga. Em suma, todo o prazer que eu possivelmente venha a extrair do ato de tomar um cálice de vinho provém exclusiva e virginalmente do meu PALADAR. O mesmo paladar grosseiro e inculto que me faz apreciar guaraná "diet", paçoca do Francischini, bolo com sorvete, pão chuchado no leite com café. Já o exército de enófilos que se exasperariam com a presença do Cella numa refeição, só sentirão o mesmo prazer genuíno na presença de um Chateauneuf du Pape ou coisa que o valha. Se forem privilegiados com o poder de tê-los sempre à mesa, muito que bem. Se não forem abastados o suficiente, sofrerão as agruras da ocasionalidade. Nesse caso, ciente de que remo contra a maré, enfileiro-me orgulhosamente com a plebe ignara e inculta que se diverte com qualquer besteira.
Provável influência genética. Meu avô paterno, de quem orgulhosamente herdei o nome, escolheu, para sua predileção enofílica, um vinho denominado Particular. Homem pacato e bom, sem ambições financeiras evidentes ( para certo desânimo da esposa voluntariosa ) , ficava absolutamente feliz e pleno com o seu Particular de vez em quando. Chegaram a ter certo conforto material enquanto ele esteve empregado na burocracia ferroviária de então, que o mantinha ocupado com salário satisfatório e paz no espírito para se dedicar à família que ele adorava. Um homem com história de livro. Reza a lenda que seu pai, um italiano de idéias revolucionárias, era anarquista em algum lugar remoto na Itália. Como sua tendência política, embora tão fantástica na teoria quanto sua irmã contemporânea ( marxismo ), foi duramente combatida e reprimida pelo governo vigente em face dos excessos cometidos, ele acabou optando por emigrar ( ou fugir ) para o Brasil no final do século XIX. Deu com os costados no Rio de Janeiro onde, ainda segundo a lenda, em virtude de sua veia aventuresca ou de um sedutor magnetismo pessoal, encantou e foi encantado por uma legítima descendente da egrégia família real dos Orleans e Bragança. Encantou e seduziu, gerando um fruto desejado e proibido no ventre da pobre princesa. Sendo chamado às falas da responsabilidade pela ilustre família , não se furtou ao dever nem ao amor. Assumiria, com imenso prazer, aquela criança e sua adorada mãe. Porém, um detalhe : não se ajoelhava para leis ou compromissos formais. Sua palavra e o acordo firmado no fio do bigode eram as leis de que precisava e que respeitava. Casamento oficial simbolizava tudo aquilo contra o que lutara por toda uma vida. Estupefação geral. Ora, uma descendente real juntada? Amasiada? Nem hoje isso seria admissível. O "imbróglio" se manteve sem que nenhuma das partes cedesse. Conclusão inacreditável : meu bisavô simplesmente ficou com o filho ( ou raptou ) depois de nascido em lugar retirado e se mandou de lá. Veio para a minha atual cidade, onde o criou com o auxílio de uma criada negra, que mais tarde o serviu também como esposa ( sem casamento, lógico ), gerando um segundo filho seu. Assim, meu avô nunca conheceu sua mãe e não teve outros parentes que não o seu meio irmão mulato ( excelente pessoa, também conforme a lenda ).
Voltando pois ao nosso vinho de cada dia. Um belo dia, meu avô recebeu a visita de um parente pouca coisa melhor de vida, que estava recém chegado da Itália. Sabedor da predileção alcoólica do anfitrião, resolveu iniciá-lo na arte da degustação de um vinho de qualidade. Sobraçando uma caixa com três preciosas garrafas de Chianti legítimo, anunciou o presente com pompa. O desafio estava lançado. Chianti contra Particular. Uma barbada.
A visita foi-se embora após algum tempo e uma provável macarronada com porpetas. Não se abriu o vinho naquele momento. Meu avô esperaria uma ocasião mais propícia. Alguns dias depois, minha avó o vê chegar em casa com uma sacola grande e um ar matreiro que ela bem conhecia.
- Mulher, fiz um negocião. Fui lá no armazém e consegui nove garrafas de Particular em troca daquelas três do vinho chique que eu ganhei.
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