sábado, 6 de junho de 2009

UM TURCO EM MINHA VIDA

Ele talvez seja um dos últimos ídolos com os quais tenho a honra de conviver ainda. Apesar disso, sempre que penso nele, pesa-me a culpa da minha inaceitável infrequencia. Todas as explicações mundanas não convencem nem a mim mesmo de que isso é normal. Sou traído pelo redemoinho dos compromissos banais, desperdiçando tempo demais com pessoas e coisas que não são tão importantes. Hoje, como várias outras vezes, acordei no meio da noite e de um sonho estranho. Com ele. Nem interessa muito o enredo, o importante é que eu estava lhe prestando uma homenagem, assistindo-lhe numa dificuldade, emprestando-lhe minha visão. Sim, porque ele não a tem mais. Golpe traiçoeiro e implacável de uma vida outrora tão benevolente, foi inacreditavelmente neutralizado por um espírito obstinado e rijo, revertido em exemplo de vida para outros simples mortais. Deus, com certeza, não esperava por essa. Um castigo tão penoso, tão acintosamente desprezado. Como se colocar o filho pequeno ajoelhado no milho por horas e o pequeno passar o tempo cantando ou brincando com os grãos. Muito frustrante, imagino, para o Criador.

Incrível como um sonho nos acorda duplamente. Decidi então, mais uma vez, escrever para purgar minhas falhas. Que a pena me liberte da culpa de não ter nascido para a simples tarefa de compartilhar sentimentos. Sou-lhe grato por tantas coisas. Começarei talvez pela mais importante. Ele gerou a pessoa que ocupou e modelou praticamente toda a primeira metade de minha vida. E que me tornou a pessoa que sou hoje. Não posso deixar de pensar que metade daqueles genes vieram desse filho de imigrantes libaneses, de infância difícil como a maioria deles. Conheci apenas sua mãe, mulher também exemplar, dócil, amorosa, sofrida. Veio de sua terra natal, prometida para o casamento, sem nunca ter visto o futuro marido. Evidente a origem da coragem e têmpera do filho. Por ingrata coincidência, meu primeiro compromisso "social"como namorado foi assistir ao enterro do velho pai/avô. Interessante cronologia. Ele os deixava, eu entrava. Criado então na dificuldade de um vilarejo pobre, sua trajetória é auto-explicativa. Estudou como nenhum dos filhos, contra tudo e todos, culminando com o curso de Direito na USP, retrato da excelência do resultado. Foi abençoado com uma esposa que o completou de maneira cabal. Teve filhos de quem sempre se orgulhou e para quem sempre viveu, sou memória e testemunha viva disso. Trabalhador incansável, por prazer e por destino. Causa de atritos episódicos, detestava ficar longe dele, fosse o lazer qualquer. Político e administrador de vocação intestina, sofreu as injustiças inexoráveis da imaturidade do sistema para com um espírito idealista. Foi um dos exemplares de uma linhagem de grandes homens, que começaram de muito embaixo, recebendo o bastão daquela geração maravilhosa de heróis que chegaram ao país com a roupa do corpo, filhos na mão, coração apertado e a cabeça rodando, mistura louca de medo e esperança. Que abriram o caminho a golpes de foice, sangue, vermes, casebres, febres e muita raça. Pegaram esse bastão e nos entregam em almofadas de veludo, automóveis, casas com piscinas, colégios caros, viagens, enfim coisas que me fazem até envergonhado. Como cobertura de tudo isso, bens e patrimonio que nunca mexemos um dedo para merecer e que às vezes penso não merecermos mesmo. E, acreditem ou não, muitas vezes são fruto de discórdia e desentendimentos por valores ou quinhões.

Como eu dizia sou-lhe grato por muitas coisas. Obrigado por ela. Obrigado pelo carinho de segundo pai que sempre foi para mim. Obrigado pelo esforço hercúleo de formar este patrimonio que hoje tranquiliza sobremaneira a vida de todos, principalmente seu neto. Obrigado pelo exemplo de tenacidade e força que considero impossível de reproduzir. Obrigado finalmente pelo exemplo de bondade, perdoando a ingratidão de quem lhe deve muito. Termino com uma pontinha de inveja de seu filho e de sua assistente/secretária/amiga de todas horas, que conseguem sentir bem menos culpa do que eu.

Um comentário:

  1. Diogenes,lendo alguns de seus relatos, deparo-me com a Cleopatra Moderna. Devo-lhe dizer que
    me retratada naquelas bem escritas palavras.
    Estarei eu enganada?
    Bem, caso eu esteja certa, tenho as mãos limpas e o coração puro. Isto a meu ver é o mais importante de tudo.
    OU será que tenho uma clone e desconheço? Beijos

    ResponderExcluir