sexta-feira, 10 de julho de 2009

CARTA AOS MEUS

Meus queridos :

Estou escrevendo esta carta num momento muito especial. Já de algumas semanas que venho sentindo algo que não acontecia há anos talvez. Estamos num final de semana com feriado prolongado e ficamos todos por aqui. Convivendo, brincando, discutindo um pouco, curtindo um momento especial. Hoje passeamos pela cidade, fazendo coisas, trocando idéias, jogando conversa fora. Pra vocês, talvez, nada de mais. Mas, para mim, um raro prazer.

Há exatos vinte anos meu mundo desmoronou. Como a chuva torrencial na favela que se equilibra no morro, trouxe tudo abaixo. Minha vida de então terminara. Pensei, como é natural, que não teria forças para outra, e, se tivesse, talvez nem valesse a pena. Rolei na lama, esperneei, me arrastei um tempo considerável. Aos poucos, graças à paciência de todos vocês, fui me reerguendo. Cambaleei, reclamei, xinguei, abusei do mau humor. E fomos andando. Retomando a rotina, o trabalho, a vida. Caminhando sempre em frente. Voltei finalmente ao normal. Normal ? Engraçado, agora me dou conta que nenhum de vocês me conheceu antes disso. Meu normal, pra vocês, sempre foi este sujeito meio manco, rabugento, ressabiado, pouco carinhoso. Depressivo principalmente. Chato, na maior parte do tempo. Acreditem, eu mesmo sempre me achei chato. Sempre botando a culpa no fato de ser pai e precisar ensinar os caminhos. Mentira, deve estar cheio de pais por aí que ensinam os caminhos e não são impacientes, mal humorados. Eu sempre senti que havia um pedaço de mim arrancado, e o peso da vida tinha se tornado muito maior. Como se eu precisasse andar sempre arcado. Aliás, eu ando mesmo... Assim, eu nunca consegui curtir realmente essa nova vida que eu mesmo procurei.
Então, veio o que eu já contei. Minha mãe morreu, eu fiz cinquenta anos, meu filho vai se formar, começou a namorar, minhas meninas estão se preparando para ir embora. Tudo de uma vez. Era de se esperar uma piora intensa do meu comportamento nauseante, se é que seria possível. Realmente eu entrei num processo meio de crise. Mexeu comigo. Começou com a morte meio sem aviso. Inesperada, porém incrível. Reconheci em minha mãe a mulher de fibra, que começou a vida numa fazenda quase sem recursos, acompanhando o marido numa empreitada hoje longínqua, matando sua própria comida, armazenando em banha de porco, plantando, cozinhando, costurando, criando dois pequenos rebentos e, contra todas as evidências, lecionando para as crianças do local, sua divina vocação. Não presenciei tais fatos, sempre a vi como a senhora elegante e risonha da cidade, já recompensada com o conforto material suado e merecido. Mas ali, deitada em meio a tubos e aparelhos tão necessários quanto odiosos, ela foi admirável. Enfrentou tudo com a serenidade e a altivez de uma rainha. Encheu meu coração de orgulho e de amor. Foi embora como eu gostaria de ir no meu dia. Foi à altura do marido, outro guerreiro. Espero ter herdado a genética.
Comecei então a colocar em prática o que eu escrevi. Reformulei meu trabalho, diminuí muito o que me desgastava. Comecei a tentar ter mais prazer nele. Sempre achei que não seria possível. Confesso que me enganei. Descobri que existe um caminho. Ainda não está ideal, mas consigo vislumbrar a luz. Em pouco tempo eu acho que vou chegar lá. É uma sensação boa. Já não saio de casa arrastado, odiando ter que ir. Estou curtindo algo que não pensei que fosse acontecer mais. Junto vieram muitas outras coisas. Estou me desfazendo de preocupações, poucas propriedades, obrigações. Estamos com planos para novos desafios.
Por último, estou mais em paz comigo mesmo. Há vinte anos fiz uma espécie de pacto com quem quer que estivesse me ouvindo. Já que eu teria que recomeçar, iniciar uma nova vida, que me fosse dada a chance de chegar aos meus cinquenta anos sem grandes sustos, sem desmoronar o meu castelo. Pedi para não sofrer novamente o horror de um projeto ceifado no começo, a deslealdade de uma rasteira por trás, indefensável. Fui atendido com sobras. Não consigo pensar em qualquer detalhe para reclamar. Nem gripe forte, nem caspa, nem unha encravada. Nunca faltou nada, pelo contrário. Nenhum perigo importante, pessoal, profissional, sentimental. Tive tratamento de rei. O melhor anjo da guarda de plantão. Cumpriram com a palavra.
Vem daí o meu momento especial. Mistura maravilhosa de felicidade, paz, serenidade, leveza. Como já nem lembrava que existisse. Maravilhoso e meio assustador. Sinto-me preparado para qualquer coisa, inclusive morrer. Sempre quis ter o privilégio de morrer tranquilo, que me fosse dada a chance de elaborar minha própria morte. Hoje estou perto disso. Sei que posso durar mais uns vinte ou trinta anos, mas gostaria de estar mais ou menos assim quando ela vier.
Quero deixar apenas uma mensagem hoje para vocês quatro. Vocês que foram os responsáveis pela beleza dessa nova vida. Por ter valido tanto a pena tê-la vivido. Por terem finalmente conseguido me dar de volta essa sensação de felicidade. Obrigado por isso. Schopenhauer dizia que a única saída para as frustrações da vida está na beleza das artes, principalmente da música. Eu acho que a saída está apenas na beleza. Não na beleza falsa das luzes de neon, do canto da sereia, do pote no fim do arco-íris. Está na beleza do que é realmente belo, na beleza da coragem da verdade, da luz da sabedoria, da serenidade da honestidade. Está no peito do verdadeiro amigo, na saudade do amor vivido, na cumplicidade do olhar do amor vivente. Na ternura da gratidão e na divindade da humildade. Se vocês se lembrarem de mim só por isso, eu já terei valido a pena.

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