sexta-feira, 6 de novembro de 2009

FACULDADE NELES

Uma das coisas que a gente costuma sonhar na vida é com a possibilidade de fazer algo grandioso, inventar alguma coisa genial, ser campeão de qualquer esporte, ficar famoso e ser reconhecido por ter melhorado o mundo. Tantas pessoas conseguiram e estes se tornam nossos ídolos. Nunca fiz nada do tipo e, passados os cinquenta, me conformo que nunca o farei. Mas tenho em mente o que teria tentado mudar se mandasse alguma coisa. Na verdade são várias coisas, mas vou falar agora sobre uma delas.
Tenho comigo que o progresso e o desenvolvimento desenfreado de nossa civilização nos trazem conforto e prazer como nunca antes experimentado, mas trazem também mudanças tão traumáticas e intensamente corrosivas para nossas vidas como também jamais nos foi infligido. Nossa evolução tecnológica nos obriga a ficar constantemente ligados e aprendendo novidades. Somos retrógrados, antiquados, dinossauros, se não nos atualizamos. Somos até brindados com escolas, muitas de nível superior, que nos ensinarão, com detalhes, tudo sobre aspectos os mais variados dessa corrida. Desde engenharias várias até coisas triviais como cozinhar, fazer ginástica, fazer massagem. Coisas que, por muito tempo, foram apenas habilidade manual, talento, dom, ensinadas de pai para filho e aprendidas na pura prática, hoje se aprende com detalhes e regras. Treina-se tudo. Para tudo existem estudos, teorias, métodos. Nada contra. Mas determinadas estruturas sociais pré-históricas de nossas vidas curiosamente se mantém à margem dessa fúria metodológica . Durante toda a vida dessa atual civilização três entidades pétreas do relacionamento humano se mantém amadoras, empíricas, ainda aprendidas na raça, no calor da experiência. Pois bem, essa seria minha contribuição para o mundo de hoje - a partir desta data haveria obrigatoriedade irrecusável de se fazer curso superior para as seguintes profissões :

POLÍTICO - desnecessário me alongar muito neste tópico. Auto-explicativo, evidente por si só. Talvez a estrutura social que MENOS tenha se desenvolvido com o passar do tempo. Todos sabem, todos falam, é consenso, mas ninguém se mexe. Continuamos com políticos de péssima formação moral, que corrompem os recém-chegados inebriados com alguma ideologia, esmagando-os com um sistema de cooptação poderoso e hermeticamente fechado. Um sistema que é usado, também com bastante eficiência, em nosso sistema judicial-penitenciário. Quando a gente fica mais velho começa até a pensar em entrar para a política. Muitos dizem que, se os bons não entrarem, ficam só os ruins. Tem lógica, mas prefiro realizar a poda através da capacidade intelectual gerada pelo conhecimento. Se existe uma escola que me tornará um excelente político, por que confiar apenas nos meus belos olhos ? FACULDADE NELES !

MARIDO E MULHER - esse relacionamento, o mais antigo que existe, está evidentemente desmoronando. O índice de separações e a tendência de postergação do casamento entre os jovens mostram que pouca gente mais tem certeza de que quer se casar. Minha opinião vai ainda mais longe. Poucos tem alguma noção, aos vinte anos, do que seja casamento. Medo de perder todas as oportunidades, viajar, namorar quanto puder, ser dono do próprio nariz. Gosto dela mas vou ficar preso. Tanto para se fazer. Gosto dele mas não posso abandonar minha carreira agora.
Nesse aspecto tenho um raciocínio que algumas vão considerar machista. Mas não é. Penso ser apenas realista, constatar os fatos. A nossa vida moderna mudou muita coisa, mas talvez a maior transformação de todas tenha acontecido na vida da mulher. Durante séculos a vida matrimonial foi mantida no ringue dos papéis bem determinados da figura masculina e feminina. Não estou dizendo que era correto, apenas que era determinado. Apesar de muitos defeitos, todos sabiam o que deles era esperado. Geravam muito sofrimento, angústia, frustração. A sociedade machista secular determinava as regras e todos a cumpriam, bem ou mal. Os casamentos duravam até a morte, as crianças se mantinham no clã até criarem as suas próprias famílias e as mulheres se submetiam em benefício do todo. Quando chegavam a velhice comentavam que havia valido a pena o sacrifício, pois seus filhos estavam criados e prontos para o mundo. Nas últimas décadas, muito justamente - imperioso dizer, a mulher perpetrou uma revolução nunca vista nos costumes e na vida social. Reclamou para si o direito sagrado do trabalho, da independência, da vontade, da escolha de seu próprio destino. Saiu detrás do fogão e da máquina de costura para a diretoria e presidência de multinacionais. Está dirigindo caminhões e onibus, motoniveladoras, lutando boxe, nos ministérios, nas fábricas, fazendo negócios, no Congresso, dirigindo os destinos de países como o Chile e a Alemanha, aconselhando o Presidente dos E.U.A. Fizeram um trabalho fantástico. Ainda sentem alguma discriminação, mas tudo ainda é novidade e deve ser apenas resquício de ressentimento e algum grau de ciúme e inveja. Muito bonito. Mas, como tudo tem o seu outro lado, o processo deixou alguns pontos descobertos. Apesar de eternamente desprezada, diminuída pela arrogância masculina de então, o papel da mulher como dona de casa e mãe em tempo integral era absolutamente essencial para os moldes do casamento como o conhecíamos. Tudo na casa girava em torno dela. A essência era ela. O pai era apenas a cereja do bolo, a personificação da lei, da rigidez, da ordem. O afeto, a diligência, os detalhes, a educação, os cuidados de saúde, enfim o AMOR da casa dependia dela. Desculpe minha opinião machista mas, como homem, sempre tive uma ponta de inveja do relacionamento de mãe e filho(a). É muito diferente. Nunca vai ser igual, a não ser que a mulher continue nessa trajetória burra de tornar-se apenas outro pai.
Assim, esta mudança de atitude está criando na estrutura familiar uma certa confusão. Algumas mulheres tentam o impossível. Vida própria, casa, mãe e mulher. Coitadas, tenho uma certa pena, já que sou bastante preguiçoso. É trabalho pra caramba. Resultado ? Tensão, agressão ao organismo, fibromialgia. NOT POSSIBLE, na minha humilde opinião. Outras, inebriadas pela descoberta dessa vida independente, se transformam no segundo homem da casa. E, muitas vezes, melhor que o próprio. Alguns deles, inclusive, se recolhem ao lar trocando REALMENTE de função. Talvez até funcione melhor que as outras opções. Mas o grupo mais encontrado em nossos dias talvez seja aquele no qual existem duas figuras ausentes da casa e da família, estando estas abandonadas à responsabilidade da empregada doméstica, categoria recém promovida a esteio do lar. Infelizmente as domésticas ainda fazem parte das atividades que TAMBÉM não são formadas com faculdade, assim a família continua sem direção adequadamente habilitada. Juntamente com isso, assistimos ao surgimento de uma classe de figuras masculinas TOTALMENTE PERDIDAS com a debandada feminina. Tem marido que apoia irrestritamente, tem marido que chia, poucos ajudam, muitos se assustam e se sentem ameaçados. Quase sem exceção é gerada uma situação altamente instável, fervente, movediça. Afinal, ninguém foi efetivamente treinado ou preparado para isso. Portanto, FACULDADE PARA O CASAMENTO !!
Como ? O que vai ser ensinado ? Como resolver o problema ? Desculpe-me a modéstia, mas acho que sei pelo menos o rumo da solução. Casamento não é uma prisão, um compromisso, uma obrigação. É apenas a celebração da vontade de duas pessoas de ficarem juntas por um tempo infinito enquanto dure. Qualquer que seja a combinação entre elas. Um meio termo equilibrado é possível e desejado. Acho que vai acontecer, com o tempo. Mas depende de um segredo. O segredo é lembrar de uma coisa que estamos esquecendo. De novo o progresso nos dá, a cada dia, a sensação de que podemos tudo. De que podemos estar aqui e ali, fazer de tudo, experimentar de tudo. Realmente, nossas opções aumentaram muito. Mas estamos muito arrogantes. Extrapolamos. Queremos REALMENTE tudo. Pobres de nós. Pobres mortais de ridícula soberba. Podemos trocar de roupa, de carro, de casa e até de país em pouco tempo. Mas estamos irremediavelmente restritos, COMO SEMPRE ESTIVEMOS, a ESCOLHER. Passaremos a vida inteira tendo que escolher nosso destino. e, quando escolhemos um, não temos o outro. É simples assim. Se escolhemos este, não podemos ter o outro. A felicidade está na paz de espírito e a paz está na aceitação da escolha.

PAI/MÃE - consequencia direta do anterior, ser pai atualmente está uma barra. Filhos derivados da família anteriormente descrita, unida ou não, são figuras carentes, inseguras, inacreditavelmente espertas pela infinidade de estímulos sensoriais disponíveis irrestritamente pelos irresponsáveis e cruelmente deixados à deriva em todo o seu processo de formação moral e intelectual. Assistimos ao abandono total da formação do caráter, privilegiando-se o bem material, o prazer, a indolência. Detestam o menor esforço, a menor dificuldade. Caminham acompanhando a boiada barulhenta com rumo totalmente desconhecido. Pelo menos para eles. Chegam a adolescencia com nenhuma noção de vida real, embalados e anestesiados por pais pouco preparados, preocupados apenas com o suporte material, eles também afundados num mar de bossalidade onde grassa a ausência de princípios morais e filosóficos. Nem têm muito o que ensinar, eles que também não foram bem ensinados. Mesmo que tenhamos noção desse cenário, nossos filhos convivem diariamente com esses filhos. Como fazê-los estudar quando os colegas não o fazem ? Como dizer que, quando não mais estiverem conosco, a vida vai maltratá-los se não estiverem preparados ? Como fazê-los entender que esta preparação requer esforço, sacrifício, que nada vem de graça, que o mundo esmaga os fracos, que a vida não é só prazer de se fazer apenas o que se tem vontade ?
Tive um técnico de futebol ainda dente-de-leite que nos dava a camisa e dizia : Vamos lá e dêem o melhor de vocês. Só isso. Muito legal com a gente, mas perdemos quase todos os jogos do campeonato. Penso então no técnico Bernardinho, do vôlei. Sujeito nervoso, a seleção detonando o adversário e ele gritando e brigando com os jogadores. Nunca está satisfeito. Mas ganha quase tudo.
Passei boa parte da minha experiência como pai ouvindo de meus filhos reclamações, queixas de que nunca acho que está bom. Como pai, meus filhos são os melhores do mundo. Eles não acreditam quando falo isso, mas falo de coração aberto. São fantásticos e pobre do pai que pensa diferente. Mas lembro-me de meu pai, que também poucos elogios me fez durante a vida. Ele entendeu, e me ensinou, que não somos apenas pais mas também técnicos. Temos que prepará-los para a vitória. Por mais que soframos com os atritos constantes, não podemos decepcioná-los. Brigaremos até o fim. Quando finalmente eles estiverem lá e nossa missão tiver terminado, teremos a recompensa de poder dizer diariamente a cada um deles como eles são melhores do que nós. Pena que não tive a chance com o meu pai.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O QUE MAIS FAZER, SENÃO AGRADECER O QUE NEM FIZ POR MERECER ?

Às vezes as coisas nos chegam de sopetão, sem que as estejamos esperando, e nos atropelam, batem de frente, fazem a gente pensar "como eu gostaria de ter dito isso ". Li essa frase do título num e-mail despretensioso, citando um poeta anônimo, de alguém que não mais me detém afinidade. Mas o que tem de simples, de clichê, de piegas, como tantas frases espalhadas pela boca da filosofia cotidiana, teve em mim um efeito imediato. Eu acho isso mesmo ! Eu tenho todo o poder que necessito. Todo o poder que existe para nós mortais. O poder de usar meus cinco sentidos, de andar, correr, comer, beber, rir, amar, repartir, compartilhar, de VIVER. Tudo o que existe para nós é isso. Viver a vida, desviando das armadilhas que, na imensa maioria das vezes, nós mesmos nos colocamos. Volto a citar Schoppenhauer : momentos fugazes de felicidade entremeados por longos períodos de angústia em busca dela. Mas eu vejo o caminho : quanto menos se almeja, quanto menores forem suas ambições, quanto menos seus momentos de felicidade dependerem de fatores como dinheiro, poder, posses, superficialidades obtusas e midiáticas, mais freqüentes os momentos de felicidade. Tantas coisas boas... Faz-me lembrar "Gracias a la vida" cantada por Mercedes Sosa, por si só um grande momento. Músicas que nos marcaram, filmes que nos tocaram, grandes risadas, coisas das quais nos orgulhamos. Momentos solenes, casamento, formatura, o nascimento de nossos filhos, o casamento e a formatura deles. Pequenos grandes marcos em nós. Receber um agradecimento sincero, um elogio, um problema resolvido com habilidade. Um almoço em família, as festas de Natal, os fogos de Ano Novo. O prazer de ser inesperadamente generoso, de ensinar o que se consegue, de acordar no primeiro dia das férias.


Tudo isso DE GRAÇA, na sua fuça, ao seu dispor. E, principalmente, SEM QUE TENHAMOS FEITO ABSOLUTAMENTE NADA PARA MERECER. Foi-nos dado em adiantado, ao nascermos, pacote completo. Tudo o que precisamos fazer é APROVEITAR e deixar claro que valeu a pena o presente.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

CARTA AOS MEUS

Meus queridos :

Estou escrevendo esta carta num momento muito especial. Já de algumas semanas que venho sentindo algo que não acontecia há anos talvez. Estamos num final de semana com feriado prolongado e ficamos todos por aqui. Convivendo, brincando, discutindo um pouco, curtindo um momento especial. Hoje passeamos pela cidade, fazendo coisas, trocando idéias, jogando conversa fora. Pra vocês, talvez, nada de mais. Mas, para mim, um raro prazer.

Há exatos vinte anos meu mundo desmoronou. Como a chuva torrencial na favela que se equilibra no morro, trouxe tudo abaixo. Minha vida de então terminara. Pensei, como é natural, que não teria forças para outra, e, se tivesse, talvez nem valesse a pena. Rolei na lama, esperneei, me arrastei um tempo considerável. Aos poucos, graças à paciência de todos vocês, fui me reerguendo. Cambaleei, reclamei, xinguei, abusei do mau humor. E fomos andando. Retomando a rotina, o trabalho, a vida. Caminhando sempre em frente. Voltei finalmente ao normal. Normal ? Engraçado, agora me dou conta que nenhum de vocês me conheceu antes disso. Meu normal, pra vocês, sempre foi este sujeito meio manco, rabugento, ressabiado, pouco carinhoso. Depressivo principalmente. Chato, na maior parte do tempo. Acreditem, eu mesmo sempre me achei chato. Sempre botando a culpa no fato de ser pai e precisar ensinar os caminhos. Mentira, deve estar cheio de pais por aí que ensinam os caminhos e não são impacientes, mal humorados. Eu sempre senti que havia um pedaço de mim arrancado, e o peso da vida tinha se tornado muito maior. Como se eu precisasse andar sempre arcado. Aliás, eu ando mesmo... Assim, eu nunca consegui curtir realmente essa nova vida que eu mesmo procurei.
Então, veio o que eu já contei. Minha mãe morreu, eu fiz cinquenta anos, meu filho vai se formar, começou a namorar, minhas meninas estão se preparando para ir embora. Tudo de uma vez. Era de se esperar uma piora intensa do meu comportamento nauseante, se é que seria possível. Realmente eu entrei num processo meio de crise. Mexeu comigo. Começou com a morte meio sem aviso. Inesperada, porém incrível. Reconheci em minha mãe a mulher de fibra, que começou a vida numa fazenda quase sem recursos, acompanhando o marido numa empreitada hoje longínqua, matando sua própria comida, armazenando em banha de porco, plantando, cozinhando, costurando, criando dois pequenos rebentos e, contra todas as evidências, lecionando para as crianças do local, sua divina vocação. Não presenciei tais fatos, sempre a vi como a senhora elegante e risonha da cidade, já recompensada com o conforto material suado e merecido. Mas ali, deitada em meio a tubos e aparelhos tão necessários quanto odiosos, ela foi admirável. Enfrentou tudo com a serenidade e a altivez de uma rainha. Encheu meu coração de orgulho e de amor. Foi embora como eu gostaria de ir no meu dia. Foi à altura do marido, outro guerreiro. Espero ter herdado a genética.
Comecei então a colocar em prática o que eu escrevi. Reformulei meu trabalho, diminuí muito o que me desgastava. Comecei a tentar ter mais prazer nele. Sempre achei que não seria possível. Confesso que me enganei. Descobri que existe um caminho. Ainda não está ideal, mas consigo vislumbrar a luz. Em pouco tempo eu acho que vou chegar lá. É uma sensação boa. Já não saio de casa arrastado, odiando ter que ir. Estou curtindo algo que não pensei que fosse acontecer mais. Junto vieram muitas outras coisas. Estou me desfazendo de preocupações, poucas propriedades, obrigações. Estamos com planos para novos desafios.
Por último, estou mais em paz comigo mesmo. Há vinte anos fiz uma espécie de pacto com quem quer que estivesse me ouvindo. Já que eu teria que recomeçar, iniciar uma nova vida, que me fosse dada a chance de chegar aos meus cinquenta anos sem grandes sustos, sem desmoronar o meu castelo. Pedi para não sofrer novamente o horror de um projeto ceifado no começo, a deslealdade de uma rasteira por trás, indefensável. Fui atendido com sobras. Não consigo pensar em qualquer detalhe para reclamar. Nem gripe forte, nem caspa, nem unha encravada. Nunca faltou nada, pelo contrário. Nenhum perigo importante, pessoal, profissional, sentimental. Tive tratamento de rei. O melhor anjo da guarda de plantão. Cumpriram com a palavra.
Vem daí o meu momento especial. Mistura maravilhosa de felicidade, paz, serenidade, leveza. Como já nem lembrava que existisse. Maravilhoso e meio assustador. Sinto-me preparado para qualquer coisa, inclusive morrer. Sempre quis ter o privilégio de morrer tranquilo, que me fosse dada a chance de elaborar minha própria morte. Hoje estou perto disso. Sei que posso durar mais uns vinte ou trinta anos, mas gostaria de estar mais ou menos assim quando ela vier.
Quero deixar apenas uma mensagem hoje para vocês quatro. Vocês que foram os responsáveis pela beleza dessa nova vida. Por ter valido tanto a pena tê-la vivido. Por terem finalmente conseguido me dar de volta essa sensação de felicidade. Obrigado por isso. Schopenhauer dizia que a única saída para as frustrações da vida está na beleza das artes, principalmente da música. Eu acho que a saída está apenas na beleza. Não na beleza falsa das luzes de neon, do canto da sereia, do pote no fim do arco-íris. Está na beleza do que é realmente belo, na beleza da coragem da verdade, da luz da sabedoria, da serenidade da honestidade. Está no peito do verdadeiro amigo, na saudade do amor vivido, na cumplicidade do olhar do amor vivente. Na ternura da gratidão e na divindade da humildade. Se vocês se lembrarem de mim só por isso, eu já terei valido a pena.

domingo, 21 de junho de 2009

LUMIERES

A inspiração para escrever minhas reflexões em forma de blog me foi dada por um de meus sobrinhos. Sujeito capaz, leitor voraz e eclético, tem seus pensamentos espalhados na net já há bem mais tempo. Numa produção muito mais profícua, quase diária mesmo, mistura observações, as mais sortidas, sobre o mundo atual, englobando economia, política e artes, com tocantes desabafos de algumas agruras pessoais, como todos temos. Corajosamente, como aquele que não tem o que temer. Cresce-me o orgulho e a admiração apenas por esse aspecto. Na maioria das vezes, entretanto, destila comentários flamejantes contra governos, instituições e figuras do mundo cosmopolita acrescidos de suas impressões pessoais sempre carregadas de entusiasmo. Não se pode dizer nunca que tenha ficado em cima do muro. Convicções fortes. Preferências marcadas. Quarenta anos antes e provavelmente estaria marchando ou atirando ovos de um lado para outro da Rua Maria Antonia como, reza a lenda, seus pais estiveram. Quem conhece a mãe sabe que ela deve ter ficado mais assistindo, porque correr dos guardas não seria possível. Genético? O interesse pelo saber com certeza. Confesso, no entanto, que meus parcos conhecimentos de atualidades , principalmente políticas, e a crescente falta de interesse em obtê-los, me permite pouquíssimos comentários em suas resenhas. Nenhuma falta faz, pois seus seguidores são inúmeros e fiéis. Mas gostaria de escrever algo a respeito de sua frustração, algo recente, esperando por um herdeiro que nunca vem. Não que eu tenha a solução, quem me dera. Sou, conforme já escrevi, partidário do ditado popular ( anônimo ? ) de se escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho para nos tornarmos completos. Nunca me havia passado pela cabeça a idéia de como seria se não me fosse dado esse privilégio. Sou, como todos os idiotas mortais humanos, pretensioso a ponto de nunca ter pensado seriamente nisso. Já que os tive até precocemente, e tantos são os que os tem até impunemente, poupei-me todo esse tempo de sofrer com a elaboração desta perda. Hoje, pensando em vocês (na sua princesa também, lógico), eu percebi que também teria magoado. Determinadas situações não admitem grandes frases de consolação, ou, pelo menos, não sou competente para arriscar. Ter filhos é um saco ? É, mas também é muito legal. Impossível negar que um casal como vocês seriam pais incomparáveis. Nem vou me meter a dar conselhos. Um sujeito esperto e sagaz como você vai perceber as possibilidades muito antes que eu. Torço apenas para que seja algo que possa ser consertado. Tanta coisa acontecendo nessa área atualmente. Se não, digo-lhe apenas onde me apoiaria, como já me apoiei em situação anterior. Nossa vida não é realmente nossa. Nos foi dada por alguém. Incrivelmente poderoso e, às vezes, incrivelmente cruel. Cabe a nós decidirmos o que fazer com ela. Venha do jeito que vier, temos que nos adaptar. Para o bem ou para o mal. Jogue-se do viaduto ou abra um sorriso e dê um grande beijo nessa mulher fantástica que aconteceu pra você, companheira de tantas aventuras, fiel, amorosa, e que vai aguentar firme o tranco se você aguentar também. Na minha vez eu sofri um tempo, mas resolvi aceitar que alguém manda mais do que eu. Levantei, chacoalhei a poeira e toquei o pau. Metade de mim ficou pra trás, aos pedaços. Mas a vida me deu novas partes e eu continuo indo. Existem milhares de filhos para serem cuidados nesse mundo, sob a forma de pacientes, seguidores de blog, amigos, parentes, mendigos, alunos, ou, porque não, crianças a serem acolhidas. Espere apenas o coração parar de doer. Não se faz nada sob pressão.



Para terminar, não para consolo, deixo algo que ocorreu num destes finais de semana.


Menina linda, dezenove anos, filha de médico em cidade do interior, segundo informações colhidas nunca deu problemas. Para alegria dos pais, passa no vestibular para medicina em outra cidade do interior. Muda-se para lá e, ainda segundo informações fidedignas, frequenta as aulas assiduamente, estudando e dedicando-se com afinco. Já há seis meses na escola, não vai para casa todos os finais de semana. Numa quinta à noite, seguindo a tradição de qualquer estudante universitária, vai com algumas amigas a uma festa numa chácara. Ainda seguindo a tradição, toma mais do que deve, hábito que parece estar cada vez mais arraigado na atual juventude. Pouca noção de limite, é o que se percebe. Começa a rolar na tal chácara uma parada nova, para mim até então desconhecida. Descobriram uma buzina de automóvel ( ou será de moto ? ) que, se destampada, expele uma pequena quantidade de gás com potencial alucinógeno. Quem diria, agora estão cheirando buzina de carro. A garota, talvez já meio alta, cai na bobagem, tão ingênua quanto traiçoeira, de ceder e experimentar. O efeito é imediato e ela desmaia. Os colegas, assustados, tentam reanimá-la e ela parece voltar um pouco a si. Estava viva. Atropeladamente colocaram-na num carro e voaram para chegar rapidamente ao hospital, dez quilômetros dali. Por infelicidade, a jovem estudante, ironicamente de medicina, já chegou sem vida. Todos aceitaram a tese da overdose. Mas, para desespero posterior, a autópsia revelou que ela não havia morrido pela droga. Durante o trajeto, na pressa explicável de se chegar logo ao hospital, ela tinha sido deitada no banco de trás do carro, cabeça para cima. Como tantos ébrios conhecidos, vomitou algo comido naquela festa. Por ação cruel da gravidade, associada a seu estado de torpor acentuado, não teve forças nem reflexo para virar de lado. Aspirou o conteúdo para as vias respiratórias e morreu silenciosamente por asfixia.


Não consigo imaginar porque um pai e uma mãe tenham que passar por isso. Não consigo e não quero me imaginar passando por isso. Sei que o chefe é poderoso e que temos que aceitar o que vier. Mas, algumas vezes, ele exagera.

domingo, 7 de junho de 2009

MEIO SÉCULO

É agora ou nunca. Talvez a maturidade nunca chegue para ninguém e ficar esperando pelo futuro seja apenas mais um dos engôdos dessa nossa existência misteriosa. Quanto tempo passado arrastando-se num trabalho monótono, levado apenas pela grana, assistindo-se o horror matinal diário do peso de ter que levantar e ter que fazer tanta coisa que você ABSOLUTAMENTE não tem vontade. Ter que isso, ter que aquilo. Cinquenta anos e você não é dono de seu nariz... Levanta, sai para trabalhar, passa o dia fora, geralmente submetido a agressões emocionais as mais variadas, vendendo sua alma para o DINHEIRO. Contanto que ele venha, quase qualquer coisa vale a pena. Será que é assim que deve ser ? Claro que voltar pra casa e ver uma família maravilhosa compensa muito. Se for mesmo preciso, que assim seja. Mas essa é a dúvida. Precisa ? Cadê o documento assinado por eles no qual consta que eles nos obrigam a fazer o que não gostamos apenas para satisfazermos as suas necessidades pessoais ? Será que eles não prefeririam ter menos, ser menos, apenas para, em troca, terem um pai presente, bem humorado e principalmente feliz ? E o tempo foi passando para mim, eu procrastinei voluntária e covardemente essa resposta por longos anos. Esperando a maturidade que nunca chega. E a vida se esvaindo por entre os dedos. Os cabelos brancos aparecendo. Os músculos se tornando flácidos. Subir a escada já não é tão tranquilo. Todos os dias ir dormir com esse dilema na cabeça. Até quando ? ATÉ QUANDO ??????

Daí minha mãe morreu. Subitamente, inesperadamente, imprevistamente. Ninguém me avisou . NINGUÉM ME AVISOU !!!!!!! Ninguém me avisa nada. E eu percebi que, daqui por diante, somos apenas nós. Minha geração anterior praticamente acabou. Meus pais se foram, agora eu sou o pai dos outros. Entrei na linha de tiro. Sou tronco. Ficar esperto. Tomar cuidado com o vento nas costas, com a osteoporose. Logo, logo, eu estarei frente a frente com o cara que me deu a chance de viver neste mundo e ele vai me perguntar : E aí, gostou ? Valeu a pena ? Aproveitou ? Entendeu o barato da coisa ? E eu vou titubear, dizer que sim, claro, foi maravilhoso. Mas ele não é besta. Quem fez um mundo destes não é besta. Não vou conseguir enganá-lo. Nem eu, nem a imensa maioria dos pobres mortais abobalhados nadando neste mesmo redemoinho. Ninguém entendeu nada. Ou melhor, acho que alguns poucos privilegiados chegaram perto. Mas estão escondidos. Por definição.

Minha ficha começou a cair. Não vou ainda cometer o exagero de apertar o botão de FODA-SE e manter travado. Mas vou mudar. CINQUENTA ANOS apertaram o gatilho. Mexer a bunda já mole. Mudar o trabalho, escrever meu blog, visitar e conversar com os mais velhos, ouvir suas histórias. Olhar para as pessoas. Parar com a pressa. Importar-me menos com o pouco importante. E principalmente ...........

ANDAR MAIS COM MINHA MULHER NA MOTO LEGAL QUE NÓS COMPRAMOS!!!!!!

sábado, 6 de junho de 2009

UM TURCO EM MINHA VIDA

Ele talvez seja um dos últimos ídolos com os quais tenho a honra de conviver ainda. Apesar disso, sempre que penso nele, pesa-me a culpa da minha inaceitável infrequencia. Todas as explicações mundanas não convencem nem a mim mesmo de que isso é normal. Sou traído pelo redemoinho dos compromissos banais, desperdiçando tempo demais com pessoas e coisas que não são tão importantes. Hoje, como várias outras vezes, acordei no meio da noite e de um sonho estranho. Com ele. Nem interessa muito o enredo, o importante é que eu estava lhe prestando uma homenagem, assistindo-lhe numa dificuldade, emprestando-lhe minha visão. Sim, porque ele não a tem mais. Golpe traiçoeiro e implacável de uma vida outrora tão benevolente, foi inacreditavelmente neutralizado por um espírito obstinado e rijo, revertido em exemplo de vida para outros simples mortais. Deus, com certeza, não esperava por essa. Um castigo tão penoso, tão acintosamente desprezado. Como se colocar o filho pequeno ajoelhado no milho por horas e o pequeno passar o tempo cantando ou brincando com os grãos. Muito frustrante, imagino, para o Criador.

Incrível como um sonho nos acorda duplamente. Decidi então, mais uma vez, escrever para purgar minhas falhas. Que a pena me liberte da culpa de não ter nascido para a simples tarefa de compartilhar sentimentos. Sou-lhe grato por tantas coisas. Começarei talvez pela mais importante. Ele gerou a pessoa que ocupou e modelou praticamente toda a primeira metade de minha vida. E que me tornou a pessoa que sou hoje. Não posso deixar de pensar que metade daqueles genes vieram desse filho de imigrantes libaneses, de infância difícil como a maioria deles. Conheci apenas sua mãe, mulher também exemplar, dócil, amorosa, sofrida. Veio de sua terra natal, prometida para o casamento, sem nunca ter visto o futuro marido. Evidente a origem da coragem e têmpera do filho. Por ingrata coincidência, meu primeiro compromisso "social"como namorado foi assistir ao enterro do velho pai/avô. Interessante cronologia. Ele os deixava, eu entrava. Criado então na dificuldade de um vilarejo pobre, sua trajetória é auto-explicativa. Estudou como nenhum dos filhos, contra tudo e todos, culminando com o curso de Direito na USP, retrato da excelência do resultado. Foi abençoado com uma esposa que o completou de maneira cabal. Teve filhos de quem sempre se orgulhou e para quem sempre viveu, sou memória e testemunha viva disso. Trabalhador incansável, por prazer e por destino. Causa de atritos episódicos, detestava ficar longe dele, fosse o lazer qualquer. Político e administrador de vocação intestina, sofreu as injustiças inexoráveis da imaturidade do sistema para com um espírito idealista. Foi um dos exemplares de uma linhagem de grandes homens, que começaram de muito embaixo, recebendo o bastão daquela geração maravilhosa de heróis que chegaram ao país com a roupa do corpo, filhos na mão, coração apertado e a cabeça rodando, mistura louca de medo e esperança. Que abriram o caminho a golpes de foice, sangue, vermes, casebres, febres e muita raça. Pegaram esse bastão e nos entregam em almofadas de veludo, automóveis, casas com piscinas, colégios caros, viagens, enfim coisas que me fazem até envergonhado. Como cobertura de tudo isso, bens e patrimonio que nunca mexemos um dedo para merecer e que às vezes penso não merecermos mesmo. E, acreditem ou não, muitas vezes são fruto de discórdia e desentendimentos por valores ou quinhões.

Como eu dizia sou-lhe grato por muitas coisas. Obrigado por ela. Obrigado pelo carinho de segundo pai que sempre foi para mim. Obrigado pelo esforço hercúleo de formar este patrimonio que hoje tranquiliza sobremaneira a vida de todos, principalmente seu neto. Obrigado pelo exemplo de tenacidade e força que considero impossível de reproduzir. Obrigado finalmente pelo exemplo de bondade, perdoando a ingratidão de quem lhe deve muito. Termino com uma pontinha de inveja de seu filho e de sua assistente/secretária/amiga de todas horas, que conseguem sentir bem menos culpa do que eu.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

BEBÊ CHORÃO

Arthur Schopenhauer dizia que a vida é uma infindável sucessão de longos períodos de sofrimento em busca do desejo, e experiências curtas de prazer dos desejos que foram satisfeitos. A única forma de plenitude total desse desejo estava na Arte, mais especificamente na Música. A outra forma de se livrar deste redemoinho perverso de sofrimento estaria na abolição total do desejo, que seria o Nirvana. Beethoven considerava a música a linguagem de Deus. Monteiro Lobato escreveu, através da sábia Dona Benta em "História do mundo para as crianças", que a humanidade está apenas na sua infância e, como tal, ainda mostra inúmeros moleques de rua, maltrapilhos, valentões, malcriados e incultos, surrando impunemente os mais fracos, brigando entre si de faca e fazendo sua própria lei.

Já falei antes dos meus ídolos. Eis mais alguns deles. Falando coisas que eu gostaria de ter falado. Grandes sacadas. Vamos em frente. Temos então um mundo ainda generalizadamente primitivo com exceções pipocando por todo lado. Temos vida inteligente sim. Música é divino. E só mais uma coisa é divina. O amor. Palavra piegas que banalizou-se na tradução inadequada. Cresci pensando que amor era uma palavra usada apenas entre casais enamorados. Que vergonha dizer eu te amo em qualquer outra ocasião. Recentemente li que a tradução fiel do que Cristo tentou dizer com "amai o próximo como a ti mesmo" significava REALMENTE cuidar, proteger. Não fazer ao outro o que não quiser que seja feito a ti mesmo. Essa é a maior sacada de todas. Sozinha ela resolve tudo. Conserta tudo como por mágica. Pena que não seja fácil. E que todos estejam tão longe desse caminho.

Mas existem toneladas desse amor divino escondidas e fartamente disseminadas entre nós, no nosso dia a dia. Virtualmente todos os habitantes que passaram por este Planeta jovem e fervilhante já experimentaram dele. Pena que a imensa maioria muitas vezes nem se apercebe. Passamos grande parte da vida sem entendê-lo. Alguns felizardos conseguem acordar a tempo e curti-lo um pouco. As próprias donas do dito cujo às vezes não o compreendem. Sentem, passam, mas quase nem percebem. É o amor divino na sua forma mais primitiva, puro, angustiante, gratuito. Pode levar suas donas facilmente à loucura.

Quer saber onde encontrá-lo? Aqui vão algumas dicas :

1. Comece visitando um berçário. Entre no quarto quando for a hora de mamar. Olhe bem no semblante dela.
2. Esgueire-se sorrateiramente à noite na casa de qualquer bebê, observe-a perder o sono e levantar-se de madrugada apenas para ver se ele está respirando.
3. Acompanhe-a a um restaurante. Observe-a perder incontáveis refeições para dar de mamar ou niná-lo para fazê-lo parar de chorar.
4. Comece a ficar mais agressivo. Preste bem atenção no olhar dela quando uma pessoa de idade ou criança insiste em tentar segurar o bebê no colo.
5. Solte-a num shopping ou praia lotada e zombe do esforço hercúleo dela para não perdê-lo de vista.
6. Divirta-se um pouco. Tente brincar com ele tirando-lhe algum brinquedo ou ameaçando dar-lhe alguma coisa e recolhendo em seguida. Tente fazer as pazes com ela depois.
7. Diversão macabra : naquela praia ou shopping lotado, esconda o pivete por trinta minutos. Não tem quem a faça fazer as pazes com você depois disso.

Mas, pra bom entendedor, nada disso é preciso. Apenas olhe para qualquer mãe que observa seu filho, DE QUALQUER IDADE, dormindo. Aquilo é o amor mais puro que você irá encontrar nesta vida.

Este será o meu primeiro dia das mães sem a minha. Estou velho e nunca pensei que fosse chorar por isso. Ainda bem que estava enganado.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

A SENHORA DAS MOEDAS

Sinceramente, um rótulo injusto. Quando, há milhares de anos atrás, sua figura surgiu, no platô da curva da minha vida escancarada naquelas cartas de tarô espalhadas sobre a mesa, minha reação não podia ser mais automática : confirmava-se o descrédito que sempre tive em tais procedimentos esotéricos. Mesmo em presença da figura magra, suave e pálida da estudante de Medicina que havia atendido meu pedido a contragosto, explicando que sua habilidade havia sido ensinada por sua avó e que não tinha por hábito utilizá-la com estranhos, mesmo com ela continuando impassível o ritual de abrir as cartas vagarosamente sobre a mesa, não pude deixar de ficar momentaneamente desapontado. Eu estava totalmente embasbacado com o desenrolar do processo até então, quando minha vida tinha sido exposta, resumidamente é claro, mas de maneira inconfundível e clara pelas cartas anteriores. Incrível constatar o aparecimento da figura da Madona, protetora, conselheira, maternal, no limiar da minha vida adulta. Uma criança logo após. E o surgimento da carta negra, a Morte, na metade do platô adulto, me fez sofrer um baque considerável. Aquela estudante de Medicina estava mangando comigo... Não me conhecia quase, apenas um contato superficial recente, por pouquíssimo tempo. Ninguém lhe contara nada de mim, garantiu. Nem idéia de que eu atravessava a fase mais negra da minha ainda jovem vida naquele momento. Ainda assim, quem embaralhou e dispôs as cartas sobre a mesa fui eu mesmo. Aquela nova carta feminina, carta de cunho monetário, material, cheirando ambição e luxúria, certamente me provocou espanto. Não me via, naquele momento, propenso a qualquer ligação com tais atributos.

Hoje sou grato àquela estudante angelical que nunca mais vi. Aquela Senhora das Moedas me fez renascer e voltar à vida. Tinha sido expulso à revelia de uma vida maravilhosa, onde fui conduzido e moldado por mãos sábias e serenas através das intempéries, e estava boiando inerte por águas revoltas. Ela surgiu de repente, improvável, exuberante, paciente, projetando-me, de maneira lenta e inexorável, para uma nova vida de comunhão, parceria, energia e celebração. Nada de ambições fúteis ou ganância inconsequente, como o título poderia pressupor. Apenas uma vida simples e mundana, de busca incessante pelo prazer de viver em toda plenitude. Sem grandes elocubrações mentais, complicadas, maçantes, pesadas. "Keep it simple", divirta-se tanto no excesso como na falta, extraia da matéria apenas o que ela possa prover de felicidade. Ria bastante, da fartura e da desgraça, nunca perca a piada. Mantenha princípios morais sempre, felicidade não existe sem eles. Vivacidade, intensidade, esplendor, simpatia e beleza jamais foram tão bem personificadas. Sempre rainha, acostumada a todas as atenções em qualquer ambiente onde entra, nunca fez disso orgulho tolo. Seu sorriso derrete, seus olhos paralisam, seu brilho ofusca. Durante muito tempo estive incomodado de tê-la a meu lado, quem sou eu para estar com uma mulher tão linda! Longos anos se passaram de fiel e estóica persistência da parte dela até que eu me convencesse que lhe era merecedor. Nem sei se já estou completamente persuadido. Gerou-me duas filhas que a graça de Deus permitiu o quase impossível - melhorar a qualidade materna. Passa pelas dificuldades como se não existissem, raramente perde o bom humor, está sempre pronta para a vida. Em resumo, tudo o que eu precisava daquele momento em diante.

O tarô daquele dia me prometeu tudo isso até agora. Daqui por diante não está mais no trato. Nem senti muito o tempo passar. Deixo nas mãos do meu anjo da guarda. Afinal de contas, ele tem sido perfeito.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

VOADORA

Recebo, como todo mundo, inúmeros e-mails pegajosos sobre amizade e amor. Quase todos de péssimo gosto e enjoativamente pungentes. Geralmente maculam e invertem o objetivo básico a que se propoem de lembrar-nos de nossos instintos e necessidades primordiais. Não consigo "entrar no clima" e me autoflagelar por não conversar mais vezes com meus amigos, dizer-lhes o quanto os amo ou como sinto orgulho de tê-los por perto. Massifica-se mais uma vez um sentimento nobre, puro, especial para quem o experimenta. Amigos são os luxos mais socialmente justos que eu posso pensar. São caríssimos e qualquer molambo pode ter. Aliás, Deus existe, são muito mais comuns e leais entre os menos favorecidos pela sorte pecuniária. O dinheiro é tão traiçoeiramente venenoso que corrói lentamente as correntes de qualquer amizade. Exacerba e expõe a indecência de nossa mesquinharia, de nossa torpeza moral, afastando-nos de valores e princípios que se opoem ao seu ganho desenfreado. Abraham Lincoln é um de meus ídolos, entre outras coisas, pela frase : "O dinheiro é um excelente empregado, mas um péssimo patrão."


Tenho poucos amigos. Ao menos como considero amigos. Existe grande diferença entre convívio social e amizade. Sou avesso a badalações sociais para desespero supremo da patroa. Posso ser facilmente confundido com algum primo distante do Urtigão e já fui insistentemente caracterizado como um ogro anti-social, um Shrek pequeno-burguês contemporâneo. Não sou malcriado ou agressivo ou inadequado, no entanto. Tenho convívio social profissional intenso, o que talvez já me baste. Gosto de jogar conversa fora sem compromisso, mas em doses homeopáticas e seleção cuidadosa dos participantes. Nada mais chato do que ir a qualquer situação social e ter que aturar pessoas inadequadas que nos usam para fazer terapia contando vantagens, mentiras ou que fingem nos apreciar. Acreditem, apesar de toda a minha ogrice, passo por isso mais vezes do que gostaria...


Amizade passa muito pela afinidade. Não precisa tanto de muita convivência, mas muito de empatia. Por motivos vários, converso esporadicamente com meus amigos. Fico sem ver alguns por anos até. Mas é extraordinária a sensação que sinto quando, após anos sem se ver, conversamos como se tivéssemos estado sempre juntos. Como se o tempo nunca tivesse passado. A vida passou, as coisas mudaram, separações, empregos, cidades, filhos, cabelos brancos, flacidez, artrites. Mas ali, dentro de nós, algo que nem nome tem, um elo de ligação metafísico, uma conjunção espiritual de toda uma sequencia de fatos vividos juntos, aflora espontânea e abundante, dando-nos a certeza de que nossa amizade, essa amizade que eu prezo, é atemporal, arraigada, teimosa, poderosa, extremamente compensadora e prazerosa. Poucos, mas bons. Esporádicos, mas valiosos.


Como eu li num desses e-mails : "Amigo não é o cara que te aparta de uma briga, é aquele que chega dando uma voadora..."

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

UMA CLEÓPATRA MODERNA

Ondas vibratórias no olhar ? Ferormônios ? Personalidade magnética ? Macumba ? Qual seria o segredo do poder entorpecedor emanado por certos seres humanos sobre outros inexplicavelmente SUSCETÍVEIS ? Qual receptor externo estaria faltando em Otávio que sobrou em Júlio César e Marco Antonio ? Onde se esconde o alerta de fuga, o reflexo de retirada diante do perigo iminente ? Cadê a adrenalina ?

Ela nasceu em família imigrante "remediada", com conforto acima da média. Linda, cativante, sempre alegre e espevitada. Sua espontaneidade e sinceridade se tornando qualidade principal, apesar dos excessos. Cresceu viçosa por entre travessuras quase sempre impunes e um desinteresse escolar ocioso que descambava frequentemente para o desespero nas provas finais de cada ano. Em qualquer outra cria, tal comportamento teria merecido doses bem mais severas de tortura física e psicológica que as aplicadas no caso. Reza a lenda que sempre foi "a favorita do papai". Evoluiu, graciosa e despreocupada, até o final da adolescência, sempre com fartura de namorados e mimos. Os pais, sempre esperando o momento certo, no qual o fruto começaria a amadurecer, encontrar rumos, encarar a "real life". Porém, o destino não quis assim. Como uma representante legítima dessa categoria de pessoas "magnetizadoras"eis que surge, do nada absoluto, um Dom Quixote destemido, cavalheiro, de amor desbragado, rompedor, prostrado a seus pés, a seu dispor. Ligeiramente mais velho, experiente, exibindo patrimônio aceitável e profissão honesta, enfim, sem críticas salvadoras da catástrofe. Enfrentou a vigorosa e sábia oposição de todas as pessoas com algum resquício de senso, principalmente do pai zeloso, que cheirava a asneira. Combateu todos os argumentos com a precisão do causídico, a energia do amor transbordante e o arrebatamento dos tolos. A jovem princesa, longe de sequer analisar alternativas, ansiosa por passar para a propriedade de um senhor mais promissor, mais abnegado, mais servil, usa de toda a sua experiência em persuadir e facilmente alcança seu objetivo. Cai novamente na cilada da vida fácil de caprichos satisfeitos e procrastinação de responsabilidades. Toma seu marido e sua nova vida com ingenuidade simplória e despreparo consentido. Mora em sua nova casa de bonecas, cheia de brinquedos novos. Rapidamente torna ainda mais real a nova brincadeira e torna-se mãe de duas lindas meninas. Completa o seu conto de fadas. "E foram felizes para sempre..."

Bem, essa é uma outra história. O mundo dela, na verdade, foi mais schopenhaueriano do que ela jamais poderia ter imaginado. Nunca conseguiu recuperar o prejuízo e talvez nunca tenha realmente entendido onde o caminho se bifurcou. A essência da personalidade continua a mesma, embora duramente castigada pela crueldade da vida. Mantém uma postura cronicamente defensiva, com os pêlos eriçados e as unhas constantemente à mostra, acuada pela agressividade do rolo compressor que atropelou seu conto de fadas. Defende heroicamente o que restou dele e dispara sua metralhadora giratória ao menor sinal de ameaça. Ao mesmo tempo, sofre o martírio perpétuo e inconformado da sua certeza de inocencia.

Para o convívio, um pouco difícil às vezes. Mas para a posteridade, uma certeza : ou foi mais corajosa que Cleópatra, ou não conseguiu encontrar uma víbora à mão...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

OS BATISTAS

Tenho três filhos. Todos batizados na religião católica na qual fui criado para orgulho e glória de uma mãe devota e praticante. Hoje em dia essa história de religião tem se tornado cada vez mais confusa e cheia de conflitos, contradições. Pelo menos em minha cabeça. Acho que a religião, com sua nobre função de bússola espiritual, está cada vez mais necessária. Nosso mundinho contemporâneo, como qualquer jovenzinho ao se perceber desabrochando, está cada dia mais insuportavelmente arrogante e malcriado. As pessoas, tragadas por um progresso faz-de-conta maquiado por uma indústria publicitária quase criminosa, estão sendo tangidas para o lado materialista do consumo e do poder numa proporção incompatível com o que se pode considerar como necessidades básicas do ser humano. A rotina diária do indivíduo engloba uma quantidade de trabalho, ou pior, uma quantidade de "stress" quase sempre escrava e prostituída, pensando-se apenas no ganho pecuniário . Pouquíssimos trabalham por amor à arte, ou com prazer. Os sonhos de consumo aumentam em progressão aritmética e cada um deles evolui tecnologicamente em progressão geométrica. A massa acéfala corre atrás e se acaba no redemoinho.
Prato cheio para a religião. Princípios humanitários, orientação filosófica corajosa, norteando as decisões, acalmando a ansiedade, um bálsamo no espírito desanimado pela frustração. Haja vista a cancerosa proliferação das igrejas evangélicas. Berço aconchegante de espíritos mais crédulos, cumpre sua função com eficiência. Se os donos e responsáveis estão milionários, isso já é uma outra discussão. Mas onde entro eu nessa história ? Qual a religião para alguém que precisa de um pouquinho mais de coerência, nexo, explicações lógicas. Sim, um pouco de fé, mas apenas aquele toque final. Sem forçar tanto a barra. Nesse ponto é que a religião católica me confunde e falha. O mundo tecnológico já está muito arraigado dentro de nós, tornando difícil acreditar em toda a parafernália teatral que foi montada desde Constantino e mantida à custa de intimidação e ameaças até hoje. Isso sustentou o catolicismo durante séculos, mas seus dias estão provavelmente contados, a não ser que se baixe um pouco a guarda. Lutero já havia resolvido boa parte da deturpação eclesiástica, ponto para o protestantismo. Falta ainda, a meu ver, um reconhecimento mais humano do entendimento da Bíblia, como um livro escrito por humanos com possibilidade de erros na palavra de Jesus e ainda um reconhecimento da própria possibilidade da humanidade de Jesus. Sim, porque não muda muito, a meu ver, se Jesus é mesmo filho de Deus ou se ele tiver sido apenas o melhor Profeta, ou se mesmo não tiver existido. O que interessa de verdade pra mim é o que ele falou. Eu nunca fui muito praticante, por todos os motivos acima expostos mas, conforme vou ficando mais velho, e também por pensar bastante no redemoinho já referido, vejo-me cada vez mais iluminado pela doutrina desse Homem. Acredito no que ele disse como o caminho para a vida, sem necessidade de acreditar ou não em Deus Pai ou no Espírito Santo. A história da vida dele é muito bonita e vale como tal. Se ele ressucitou, se fez milagres, se está à direita do Pai neste momento, muda pouco para mim. Mostrar que, nesta vida a felicidade está em cuidar do outro como se gostaria que se fosse cuidado e que no amor ao próximo reside o nosso bem estar, me deu um rumo. Dificílimo de seguir, mas ao menos um rumo. Diferente do redemoinho.

Comecei este tema pra falar do batismo e me perdi. Tenho três afilhados de batismo, dois por tabela que considero como próprios e alguns de matrimonio. Senti-me orgulhoso em cada ocasião ao ser convidado, ou ao me casar com a convidada. No entanto, sinto-me confuso. O que , na verdade, sou para eles ? Um segundo pai ? Um orientador espiritual ? Uma fonte de presentes ?
Na verdade, não consegui ser nada disso para nenhum deles. Sou um fracasso até como presenteador, sou péssimo para isso. Detesto rejeição, quero ter sempre a certeza de agradar e, na óbvia dúvida, eu me escondi na ausência. Pobres afilhados, crianças sempre vêem seus padrinhos como o terceiro perfil enumerado e eu fui uma sonora e persistente decepção. Graças à juventude e saúde férrea dos pais, não houve necessidade da primeira função. Como orientador espiritual, também não tenho sido nada dessas coisas, não me sinto à vontade para ficar dando palpites sem ser chamado. Algumas vezes até fui, e, nesse momento, acredito que tentei o meu melhor. Mas foram poucas ocasiões, como diz o ditado da meia idade - é aquela onde achamos que já sabemos tudo mas ninguém nos pergunta nada.
Em suma, estou tentando purgar meus pecados e confessar minhas falhas com essas pobres vítimas. Tenho especial sentimento em relação a um deles, em virtude das contingências da vida terem separado geograficamente nossas famílias e nos afastado bastante. Acompanho notícias do seu desenvolvimento que , felizmente, são as melhores. Estudioso, inteligente, educado, quiçá bem apessoado, por sorte não precisou nada do padrinho ausente.
Termino aqui com uma mensagem a estes jovens de minha grande e pouco demonstrada estima. Quero que saibam que considero-me responsável por vocês, no acaso da necessidade e no limite da minha capacidade. Apesar do comportamento esquizóide, tenham em mim alguém que se orgulha muito de tê-los como afilhados.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

ENOFILIA

Tenho predisposição hereditária para aterosclerose. Porisso costumo, conforme orientação médica e da mídia pseudo-científica formadora de opinião, beber uma taça de vinho, preferencialmente tinto, com alguma frequencia. Acabei de tomar, durante minha frugal refeição noturna, uma dose generosa de um Lambrusco Cella. Espumante italiano adocicado que faz sucesso em cerimônias de casamento de minha cidade natal há alguns anos, é provavelmente execrado por qualquer enófilo com um mínimo de conhecimento da matéria. Por falar nisso:
ENÓLOGO - expert em cultura da vinha e do preparo do vinho, geralmente graduado e trabalhando na fabricação do vinho.
ENÓFILO - qualquer amante e estudioso do vinho.
SOMMELIER - profissional especializado responsável pela adega do restaurante, desde a compra, armazenamento e elaboração da carta de vinhos da casa.
Quase sempre que me encontro em tão nobre objetivo medicinal, vêm-me à cabeça uma questão existencial : Quando termina o prazer dado pelo conhecimento mundano e começa a escravidão do profundo saber ? Explico : a imensa maioria dos vinhos que tomo são absolutamente populares. Divirto-me com e aprecio de verdade quase qualquer Malbec, e virtualmente qualquer tinto francês ou italiano. Nunca provei vinhos cuja garrafa custasse muito dinheiro, e, se o fiz, já não lembro mais. Sou uma completa negação para dizer se é encorpado, frutado, amadeirado, ou para provar o vinho naquele ritual cômico e burlesco a que o garçom atencioso ( ou gozador ) às vezes me obriga. Em suma, todo o prazer que eu possivelmente venha a extrair do ato de tomar um cálice de vinho provém exclusiva e virginalmente do meu PALADAR. O mesmo paladar grosseiro e inculto que me faz apreciar guaraná "diet", paçoca do Francischini, bolo com sorvete, pão chuchado no leite com café. Já o exército de enófilos que se exasperariam com a presença do Cella numa refeição, só sentirão o mesmo prazer genuíno na presença de um Chateauneuf du Pape ou coisa que o valha. Se forem privilegiados com o poder de tê-los sempre à mesa, muito que bem. Se não forem abastados o suficiente, sofrerão as agruras da ocasionalidade. Nesse caso, ciente de que remo contra a maré, enfileiro-me orgulhosamente com a plebe ignara e inculta que se diverte com qualquer besteira.
Provável influência genética. Meu avô paterno, de quem orgulhosamente herdei o nome, escolheu, para sua predileção enofílica, um vinho denominado Particular. Homem pacato e bom, sem ambições financeiras evidentes ( para certo desânimo da esposa voluntariosa ) , ficava absolutamente feliz e pleno com o seu Particular de vez em quando. Chegaram a ter certo conforto material enquanto ele esteve empregado na burocracia ferroviária de então, que o mantinha ocupado com salário satisfatório e paz no espírito para se dedicar à família que ele adorava. Um homem com história de livro. Reza a lenda que seu pai, um italiano de idéias revolucionárias, era anarquista em algum lugar remoto na Itália. Como sua tendência política, embora tão fantástica na teoria quanto sua irmã contemporânea ( marxismo ), foi duramente combatida e reprimida pelo governo vigente em face dos excessos cometidos, ele acabou optando por emigrar ( ou fugir ) para o Brasil no final do século XIX. Deu com os costados no Rio de Janeiro onde, ainda segundo a lenda, em virtude de sua veia aventuresca ou de um sedutor magnetismo pessoal, encantou e foi encantado por uma legítima descendente da egrégia família real dos Orleans e Bragança. Encantou e seduziu, gerando um fruto desejado e proibido no ventre da pobre princesa. Sendo chamado às falas da responsabilidade pela ilustre família , não se furtou ao dever nem ao amor. Assumiria, com imenso prazer, aquela criança e sua adorada mãe. Porém, um detalhe : não se ajoelhava para leis ou compromissos formais. Sua palavra e o acordo firmado no fio do bigode eram as leis de que precisava e que respeitava. Casamento oficial simbolizava tudo aquilo contra o que lutara por toda uma vida. Estupefação geral. Ora, uma descendente real juntada? Amasiada? Nem hoje isso seria admissível. O "imbróglio" se manteve sem que nenhuma das partes cedesse. Conclusão inacreditável : meu bisavô simplesmente ficou com o filho ( ou raptou ) depois de nascido em lugar retirado e se mandou de lá. Veio para a minha atual cidade, onde o criou com o auxílio de uma criada negra, que mais tarde o serviu também como esposa ( sem casamento, lógico ), gerando um segundo filho seu. Assim, meu avô nunca conheceu sua mãe e não teve outros parentes que não o seu meio irmão mulato ( excelente pessoa, também conforme a lenda ).
Voltando pois ao nosso vinho de cada dia. Um belo dia, meu avô recebeu a visita de um parente pouca coisa melhor de vida, que estava recém chegado da Itália. Sabedor da predileção alcoólica do anfitrião, resolveu iniciá-lo na arte da degustação de um vinho de qualidade. Sobraçando uma caixa com três preciosas garrafas de Chianti legítimo, anunciou o presente com pompa. O desafio estava lançado. Chianti contra Particular. Uma barbada.
A visita foi-se embora após algum tempo e uma provável macarronada com porpetas. Não se abriu o vinho naquele momento. Meu avô esperaria uma ocasião mais propícia. Alguns dias depois, minha avó o vê chegar em casa com uma sacola grande e um ar matreiro que ela bem conhecia.
- Mulher, fiz um negocião. Fui lá no armazém e consegui nove garrafas de Particular em troca daquelas três do vinho chique que eu ganhei.