quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

UMA CLEÓPATRA MODERNA

Ondas vibratórias no olhar ? Ferormônios ? Personalidade magnética ? Macumba ? Qual seria o segredo do poder entorpecedor emanado por certos seres humanos sobre outros inexplicavelmente SUSCETÍVEIS ? Qual receptor externo estaria faltando em Otávio que sobrou em Júlio César e Marco Antonio ? Onde se esconde o alerta de fuga, o reflexo de retirada diante do perigo iminente ? Cadê a adrenalina ?

Ela nasceu em família imigrante "remediada", com conforto acima da média. Linda, cativante, sempre alegre e espevitada. Sua espontaneidade e sinceridade se tornando qualidade principal, apesar dos excessos. Cresceu viçosa por entre travessuras quase sempre impunes e um desinteresse escolar ocioso que descambava frequentemente para o desespero nas provas finais de cada ano. Em qualquer outra cria, tal comportamento teria merecido doses bem mais severas de tortura física e psicológica que as aplicadas no caso. Reza a lenda que sempre foi "a favorita do papai". Evoluiu, graciosa e despreocupada, até o final da adolescência, sempre com fartura de namorados e mimos. Os pais, sempre esperando o momento certo, no qual o fruto começaria a amadurecer, encontrar rumos, encarar a "real life". Porém, o destino não quis assim. Como uma representante legítima dessa categoria de pessoas "magnetizadoras"eis que surge, do nada absoluto, um Dom Quixote destemido, cavalheiro, de amor desbragado, rompedor, prostrado a seus pés, a seu dispor. Ligeiramente mais velho, experiente, exibindo patrimônio aceitável e profissão honesta, enfim, sem críticas salvadoras da catástrofe. Enfrentou a vigorosa e sábia oposição de todas as pessoas com algum resquício de senso, principalmente do pai zeloso, que cheirava a asneira. Combateu todos os argumentos com a precisão do causídico, a energia do amor transbordante e o arrebatamento dos tolos. A jovem princesa, longe de sequer analisar alternativas, ansiosa por passar para a propriedade de um senhor mais promissor, mais abnegado, mais servil, usa de toda a sua experiência em persuadir e facilmente alcança seu objetivo. Cai novamente na cilada da vida fácil de caprichos satisfeitos e procrastinação de responsabilidades. Toma seu marido e sua nova vida com ingenuidade simplória e despreparo consentido. Mora em sua nova casa de bonecas, cheia de brinquedos novos. Rapidamente torna ainda mais real a nova brincadeira e torna-se mãe de duas lindas meninas. Completa o seu conto de fadas. "E foram felizes para sempre..."

Bem, essa é uma outra história. O mundo dela, na verdade, foi mais schopenhaueriano do que ela jamais poderia ter imaginado. Nunca conseguiu recuperar o prejuízo e talvez nunca tenha realmente entendido onde o caminho se bifurcou. A essência da personalidade continua a mesma, embora duramente castigada pela crueldade da vida. Mantém uma postura cronicamente defensiva, com os pêlos eriçados e as unhas constantemente à mostra, acuada pela agressividade do rolo compressor que atropelou seu conto de fadas. Defende heroicamente o que restou dele e dispara sua metralhadora giratória ao menor sinal de ameaça. Ao mesmo tempo, sofre o martírio perpétuo e inconformado da sua certeza de inocencia.

Para o convívio, um pouco difícil às vezes. Mas para a posteridade, uma certeza : ou foi mais corajosa que Cleópatra, ou não conseguiu encontrar uma víbora à mão...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

OS BATISTAS

Tenho três filhos. Todos batizados na religião católica na qual fui criado para orgulho e glória de uma mãe devota e praticante. Hoje em dia essa história de religião tem se tornado cada vez mais confusa e cheia de conflitos, contradições. Pelo menos em minha cabeça. Acho que a religião, com sua nobre função de bússola espiritual, está cada vez mais necessária. Nosso mundinho contemporâneo, como qualquer jovenzinho ao se perceber desabrochando, está cada dia mais insuportavelmente arrogante e malcriado. As pessoas, tragadas por um progresso faz-de-conta maquiado por uma indústria publicitária quase criminosa, estão sendo tangidas para o lado materialista do consumo e do poder numa proporção incompatível com o que se pode considerar como necessidades básicas do ser humano. A rotina diária do indivíduo engloba uma quantidade de trabalho, ou pior, uma quantidade de "stress" quase sempre escrava e prostituída, pensando-se apenas no ganho pecuniário . Pouquíssimos trabalham por amor à arte, ou com prazer. Os sonhos de consumo aumentam em progressão aritmética e cada um deles evolui tecnologicamente em progressão geométrica. A massa acéfala corre atrás e se acaba no redemoinho.
Prato cheio para a religião. Princípios humanitários, orientação filosófica corajosa, norteando as decisões, acalmando a ansiedade, um bálsamo no espírito desanimado pela frustração. Haja vista a cancerosa proliferação das igrejas evangélicas. Berço aconchegante de espíritos mais crédulos, cumpre sua função com eficiência. Se os donos e responsáveis estão milionários, isso já é uma outra discussão. Mas onde entro eu nessa história ? Qual a religião para alguém que precisa de um pouquinho mais de coerência, nexo, explicações lógicas. Sim, um pouco de fé, mas apenas aquele toque final. Sem forçar tanto a barra. Nesse ponto é que a religião católica me confunde e falha. O mundo tecnológico já está muito arraigado dentro de nós, tornando difícil acreditar em toda a parafernália teatral que foi montada desde Constantino e mantida à custa de intimidação e ameaças até hoje. Isso sustentou o catolicismo durante séculos, mas seus dias estão provavelmente contados, a não ser que se baixe um pouco a guarda. Lutero já havia resolvido boa parte da deturpação eclesiástica, ponto para o protestantismo. Falta ainda, a meu ver, um reconhecimento mais humano do entendimento da Bíblia, como um livro escrito por humanos com possibilidade de erros na palavra de Jesus e ainda um reconhecimento da própria possibilidade da humanidade de Jesus. Sim, porque não muda muito, a meu ver, se Jesus é mesmo filho de Deus ou se ele tiver sido apenas o melhor Profeta, ou se mesmo não tiver existido. O que interessa de verdade pra mim é o que ele falou. Eu nunca fui muito praticante, por todos os motivos acima expostos mas, conforme vou ficando mais velho, e também por pensar bastante no redemoinho já referido, vejo-me cada vez mais iluminado pela doutrina desse Homem. Acredito no que ele disse como o caminho para a vida, sem necessidade de acreditar ou não em Deus Pai ou no Espírito Santo. A história da vida dele é muito bonita e vale como tal. Se ele ressucitou, se fez milagres, se está à direita do Pai neste momento, muda pouco para mim. Mostrar que, nesta vida a felicidade está em cuidar do outro como se gostaria que se fosse cuidado e que no amor ao próximo reside o nosso bem estar, me deu um rumo. Dificílimo de seguir, mas ao menos um rumo. Diferente do redemoinho.

Comecei este tema pra falar do batismo e me perdi. Tenho três afilhados de batismo, dois por tabela que considero como próprios e alguns de matrimonio. Senti-me orgulhoso em cada ocasião ao ser convidado, ou ao me casar com a convidada. No entanto, sinto-me confuso. O que , na verdade, sou para eles ? Um segundo pai ? Um orientador espiritual ? Uma fonte de presentes ?
Na verdade, não consegui ser nada disso para nenhum deles. Sou um fracasso até como presenteador, sou péssimo para isso. Detesto rejeição, quero ter sempre a certeza de agradar e, na óbvia dúvida, eu me escondi na ausência. Pobres afilhados, crianças sempre vêem seus padrinhos como o terceiro perfil enumerado e eu fui uma sonora e persistente decepção. Graças à juventude e saúde férrea dos pais, não houve necessidade da primeira função. Como orientador espiritual, também não tenho sido nada dessas coisas, não me sinto à vontade para ficar dando palpites sem ser chamado. Algumas vezes até fui, e, nesse momento, acredito que tentei o meu melhor. Mas foram poucas ocasiões, como diz o ditado da meia idade - é aquela onde achamos que já sabemos tudo mas ninguém nos pergunta nada.
Em suma, estou tentando purgar meus pecados e confessar minhas falhas com essas pobres vítimas. Tenho especial sentimento em relação a um deles, em virtude das contingências da vida terem separado geograficamente nossas famílias e nos afastado bastante. Acompanho notícias do seu desenvolvimento que , felizmente, são as melhores. Estudioso, inteligente, educado, quiçá bem apessoado, por sorte não precisou nada do padrinho ausente.
Termino aqui com uma mensagem a estes jovens de minha grande e pouco demonstrada estima. Quero que saibam que considero-me responsável por vocês, no acaso da necessidade e no limite da minha capacidade. Apesar do comportamento esquizóide, tenham em mim alguém que se orgulha muito de tê-los como afilhados.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

ENOFILIA

Tenho predisposição hereditária para aterosclerose. Porisso costumo, conforme orientação médica e da mídia pseudo-científica formadora de opinião, beber uma taça de vinho, preferencialmente tinto, com alguma frequencia. Acabei de tomar, durante minha frugal refeição noturna, uma dose generosa de um Lambrusco Cella. Espumante italiano adocicado que faz sucesso em cerimônias de casamento de minha cidade natal há alguns anos, é provavelmente execrado por qualquer enófilo com um mínimo de conhecimento da matéria. Por falar nisso:
ENÓLOGO - expert em cultura da vinha e do preparo do vinho, geralmente graduado e trabalhando na fabricação do vinho.
ENÓFILO - qualquer amante e estudioso do vinho.
SOMMELIER - profissional especializado responsável pela adega do restaurante, desde a compra, armazenamento e elaboração da carta de vinhos da casa.
Quase sempre que me encontro em tão nobre objetivo medicinal, vêm-me à cabeça uma questão existencial : Quando termina o prazer dado pelo conhecimento mundano e começa a escravidão do profundo saber ? Explico : a imensa maioria dos vinhos que tomo são absolutamente populares. Divirto-me com e aprecio de verdade quase qualquer Malbec, e virtualmente qualquer tinto francês ou italiano. Nunca provei vinhos cuja garrafa custasse muito dinheiro, e, se o fiz, já não lembro mais. Sou uma completa negação para dizer se é encorpado, frutado, amadeirado, ou para provar o vinho naquele ritual cômico e burlesco a que o garçom atencioso ( ou gozador ) às vezes me obriga. Em suma, todo o prazer que eu possivelmente venha a extrair do ato de tomar um cálice de vinho provém exclusiva e virginalmente do meu PALADAR. O mesmo paladar grosseiro e inculto que me faz apreciar guaraná "diet", paçoca do Francischini, bolo com sorvete, pão chuchado no leite com café. Já o exército de enófilos que se exasperariam com a presença do Cella numa refeição, só sentirão o mesmo prazer genuíno na presença de um Chateauneuf du Pape ou coisa que o valha. Se forem privilegiados com o poder de tê-los sempre à mesa, muito que bem. Se não forem abastados o suficiente, sofrerão as agruras da ocasionalidade. Nesse caso, ciente de que remo contra a maré, enfileiro-me orgulhosamente com a plebe ignara e inculta que se diverte com qualquer besteira.
Provável influência genética. Meu avô paterno, de quem orgulhosamente herdei o nome, escolheu, para sua predileção enofílica, um vinho denominado Particular. Homem pacato e bom, sem ambições financeiras evidentes ( para certo desânimo da esposa voluntariosa ) , ficava absolutamente feliz e pleno com o seu Particular de vez em quando. Chegaram a ter certo conforto material enquanto ele esteve empregado na burocracia ferroviária de então, que o mantinha ocupado com salário satisfatório e paz no espírito para se dedicar à família que ele adorava. Um homem com história de livro. Reza a lenda que seu pai, um italiano de idéias revolucionárias, era anarquista em algum lugar remoto na Itália. Como sua tendência política, embora tão fantástica na teoria quanto sua irmã contemporânea ( marxismo ), foi duramente combatida e reprimida pelo governo vigente em face dos excessos cometidos, ele acabou optando por emigrar ( ou fugir ) para o Brasil no final do século XIX. Deu com os costados no Rio de Janeiro onde, ainda segundo a lenda, em virtude de sua veia aventuresca ou de um sedutor magnetismo pessoal, encantou e foi encantado por uma legítima descendente da egrégia família real dos Orleans e Bragança. Encantou e seduziu, gerando um fruto desejado e proibido no ventre da pobre princesa. Sendo chamado às falas da responsabilidade pela ilustre família , não se furtou ao dever nem ao amor. Assumiria, com imenso prazer, aquela criança e sua adorada mãe. Porém, um detalhe : não se ajoelhava para leis ou compromissos formais. Sua palavra e o acordo firmado no fio do bigode eram as leis de que precisava e que respeitava. Casamento oficial simbolizava tudo aquilo contra o que lutara por toda uma vida. Estupefação geral. Ora, uma descendente real juntada? Amasiada? Nem hoje isso seria admissível. O "imbróglio" se manteve sem que nenhuma das partes cedesse. Conclusão inacreditável : meu bisavô simplesmente ficou com o filho ( ou raptou ) depois de nascido em lugar retirado e se mandou de lá. Veio para a minha atual cidade, onde o criou com o auxílio de uma criada negra, que mais tarde o serviu também como esposa ( sem casamento, lógico ), gerando um segundo filho seu. Assim, meu avô nunca conheceu sua mãe e não teve outros parentes que não o seu meio irmão mulato ( excelente pessoa, também conforme a lenda ).
Voltando pois ao nosso vinho de cada dia. Um belo dia, meu avô recebeu a visita de um parente pouca coisa melhor de vida, que estava recém chegado da Itália. Sabedor da predileção alcoólica do anfitrião, resolveu iniciá-lo na arte da degustação de um vinho de qualidade. Sobraçando uma caixa com três preciosas garrafas de Chianti legítimo, anunciou o presente com pompa. O desafio estava lançado. Chianti contra Particular. Uma barbada.
A visita foi-se embora após algum tempo e uma provável macarronada com porpetas. Não se abriu o vinho naquele momento. Meu avô esperaria uma ocasião mais propícia. Alguns dias depois, minha avó o vê chegar em casa com uma sacola grande e um ar matreiro que ela bem conhecia.
- Mulher, fiz um negocião. Fui lá no armazém e consegui nove garrafas de Particular em troca daquelas três do vinho chique que eu ganhei.