terça-feira, 30 de dezembro de 2008

HOJE

É triste a constatação, mas verdadeira. A maioria esmagadora das pessoas passa a maior parte do seu tempo ligada no automático, eu inclusive. A rotina diária é feita praticamente sem sabor. Recebemos dezenas de e-mails com conselhos como 'VIVA CADA DIA COMO SE FOSSE O ÚLTIMO " mas, quando caímos novamente no rolo compressor do dia-a-dia, tudo desaparece como por mágica. Acordamos, desempenhamos papéis e funções e voltamos a dormir com muito pouco de prazer consciente. Compromissos são agendados na quase totalidade do tempo disponível e nós consideramos isso NORMAL, ou pior, nem mesmo paramos para considerar. Estamos VIVENDO ?
Hoje, véspera de feriado, eu não trabalhei e vivi um pouco. Passei boa parte da manhã na minha escola primária. Quarenta anos se passaram. Graças a alguém iluminado e desconhecido para mim, poucas mudanças no prédio. Muito da atmosfera daqueles quatro anos tão distantes retornaram, num bafejo de lembranças ternas, recortadas, incompletas. As salas de aula, intactas com seu teto alto, chão de tábuas corridas de som característico, as marcas da lousa na parede que teimam em permanecer apesar das inúmeras demãos de tinta. E as janelas... Aquelas janelas enormes, três em cada sala, de onde se avistava a rua e o pátio tentador. Relembrei quantas partidas de bolinha de gude no chão de cimento áspero, quantos lanches de pão com manteiga ou goiabada, até a sopa ou o mingau quando tinha merendeira. As filas eram formadas antes de se entrar em classe, os menores na frente. O Guilherme e o Cândido eram os menores da minha. O Seu João, Dona Augusta, Seu Jairo, Seu Dovílio eram os bedéis dotados da divina paciência de nos aguentarem sem partirem para a criminalidade. Eles nunca vão saber, mas meu coração se encheu de gratidão e reconhecimento pelo carinho que deixaram em nós.
Passei pela diretoria, onde ficava o Seu Alyrio, diretor franzino e afável, coisa que eu só viria a reconhecer algum tempo depois. Passei também pelo consultório dentário do Seu Otto, gordo e bonachão, mas também temido pelo "motorzinho" assustador. No corredor largo lembrei-me das salas da Dona Mafalda, Dona Anunciata, Dona Nélia, Dona Helena, Dona Maria Helena, Dona Ana, Dona Áurea, professoras da velha guarda, quando a dedicação e o compromisso eram prioridade.
Entrei então na minha sala de quarto ano. Incrivelmente especial. Sentei numa cadeira. Eu penso melhor sentado. Algumas imagens. Eu me sentava no fundo à esquerda. Perto da biblioteca Monteiro Lobato, que ficava toda guardada num pequeno móvel atrás de mim. Lembro-me de tê-la lido praticamente inteira, livros encapados em papel pardo, com os títulos cuidadosamente copiados na frente, sobre listas desenhadas em lápis bicolor vermelho e azul, naquela caligrafia inconfundível de professora. Aquela caligrafia que será sempre, para mim, a mais bela. Nunca existirá letra mais bonita do que a da minha professora de quarto ano. Tão linda quanto ela mesma. Sempre bonita, elegante, arrumada, vaidosa. Tudo o que fazia era caprichado. Brava, às vezes, principalmente comigo, que nunca fui muito comportado, e a quem ela geralmente escolhia para dar o exemplo. Fiquei vários minutos ali, vendo-a em pé, ensinando geografia ou partes do corpo humano em desenhos que ela se orgulhava de ter feito à mão na lousa. Confesso que lágrimas piegas me vieram aos olhos, encabulando-me se chegasse alguém. Saudade imensa, a dor cortante do tempo que não retorna, daquela professora que eu nunca mais verei. Meu coração, no entanto, a mantém prisioneira, aquecida pelas lágrimas que acabaram por rolar, rebeldes e impunes.
Aos poucos fui retomando a compostura, acordando do devaneio. Apenas um momento de vida sentida, de coisa vivida. Sou nostálgico por princípio, alimento-me de minha história. Quanto privilégio poder tê-la, quase toda, à minha disposição aqui nesta minha cidade.

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