segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

PRESTANDO CONTAS PRA MIM MESMO

E a princesa casou-se com o plebeu e foram felizes para sempre. Bem, não foi tão simples assim. Começaram, de comum acordo, uma vida mais para plebeia do que para realeza. Terminaram os estudos, sonharam alto. Uma casa, um emprego na cidade natal, um herdeiro. Todos foram atendidos ao mesmo tempo. Casa simples com história, jardim na frente, trabalho seguro para ambos, a tão esperada gravidez. Sonhos realizados com tamanha generosidade que até assustava. Até conseguiram guardar algumas economias. Quando o pequeno príncipe nasceu, porém, a princesa adoeceu. No começo, apenas cuidados e confiança. Mas não se mostraram suficientes. Em algum momento mais tardio a lógica se perdeu, o céu escureceu e o imprevisível tomou conta. Cuidados mais complexos. E mais custosos. O plebeu confabulou com o rei. Generoso, ele foi taxativo. Conhecendo o orgulho do genro, pediu: se você não se opuser, tomo conta daqui para a frente. Não era momento para orgulho. O plebeu saiu de lado, confuso e desorientado. A princesa então foi levada numa correnteza de procedimentos, avaliações, testas franzidas, medicações agressivas. Sem a menor restrição de custos. Mas Deus não se vende para o progresso e zomba do poder dos vivos. A doce princesa foi chamada e deixou todos, principalmente o plebeu, completamente boquiabertos, atônitos, segurando uma coisinha miúda e roliça, sua herança para este mundo. Durante um bom tempo o sentido da vida do plebeu se resumiria em ficar com seu filho. Parou com o trabalho, aceitou o convite para morar no palácio, sua casa já não lhe servia. Ofereceu suas economias ao rei para pagamento das despesas, ficaria apenas com alguma reserva para não ter a humilhação de pedir emprestado. Não que fosse suficiente para cobrir o custo real, mas o faria sentir-se melhor. Afinal ela também tinha sido responsável pelo que tinham guardado. O rei, novamente generoso, recusou e, mediante a divergência, sugeriu que se guardasse para o futuro da criança. Sugestão aceita, o tempo passou. Após alguns meses o plebeu sentiu que precisava retomar sua dignidade. Sentiu que, apesar da tristeza que deixaria principalmente na rainha, deveria morar apartado com seu rebento. Nova argumentação e nova solução através da doação, ao príncipe, de uma casa muito velha logo nas redondezas do palácio, com a promessa do plebeu de levantar uma pequena casa para os dois. Os outros herdeiros do rei receberiam, equanimemente, um bem equivalente. Durante a construção desta casa, a vida foi acontecendo. O plebeu conseguiu terminá-la após quase cinco anos, em virtude de dificuldades econômicas do reino. Uma reviravolta nas finanças o obrigou a encontrar trabalho longe dali, levando o pequeno com ele. Mantinha-se sempre em contato com os soberanos, cultivando o amor recíproco entre eles. Quando a casa ficou pronta, o quadro já era muito diferente. Uma vida nova se desenhava, uma nova vida para os dois, apesar da resistência de ambos. Uma nova vida que surgiu do cansaço de ser triste, da humildade de se reconhecer frágil, da compreensão de nossa pouca significância. Uma nova vida para dar forma e sentido ao novo plebeu. O antigo já se desintegrara, exausto. Para completar a nova ruptura, a rainha-mãe, eixo emocional daquela família, também vai embora. Ainda teve tempo de conhecer a nova vida deles, o novo horizonte que se delineava para seu neto querido. Ainda teve tempo de aceitar e dar sua benção.

A casa então ficou pronta, mas nunca se prestou ao seu objetivo principal. O novo plebeu encontrou uma linda plebeia e tiveram duas lindas plebeinhas por dote, mas princesas por merecimento. Moldou-se então a situação bizarra. O príncipe, agora possuidor do dote real diretamente da rainha na falta da princesa-mãe, vivendo com sua família plebeia. Muito mais dinheiro do que o plebeu e a plebeia jamais teriam. Optou-se por deixar tudo guardado no tesouro real, a cargo do rei. Restou uma casa sem uso prático, dele por lei, parcialmente do plebeu por ter arcado com o custo da obra, e uma pensão governamental que o emprego da princesa permitiu ao filho, sob a gerência do plebeu. Alugaram a casa e viveriam todos com o sustento disso mais os frutos do trabalho do plebeu e da plebeia.
Simples ? Resolvido ? Quem concorda e quem discorda ?

Bom, para o plebeu isso nunca se resolveu em sua cabeça complicada e obcecada por justiça. Durante todo o desenrolar daquela situação uma nova família foi formada, e, diga-se a bem da verdade, nunca nenhum dos integrantes, inclusive o pequeno príncipe, questionou uma vírgula do que estava acontecendo. Mas o plebeu frequentemente se cobrava : todos são meus filhos e quero ter o orgulho de criá-los com o padrão que EU conseguir. Mas como encaixar o gasto com as obras da casa que ele acabou, por lei, dando apenas para o filho? Não teria que dar o mesmo tanto para cada uma das filhas? Naquele momento não havia possibilidade. Pegou então aquele dinheiro dado ao rei como paga pelos custos da doença da princesa e que, conforme combinado, tinha sido guardado, e tomou para si. A casa, então, tornou-se de fato e de direito do príncipe. Continuou, entretanto, usando e usufruindo do aluguel e depois utilizando-a para seu negócio sem pagar aluguel a ele. Correto? Errado? Somava-se a isso a pensão do garoto, que também entrava no bolo. Tudo era acrescentado aos rendimentos de ambos para os gastos da vida. Como uma pedra pontuda no sapato, isso espetava seu brio. Ora, então simplesmente deixe de usar os tais rendimentos e fique tranquilo com sua consciência. Mas não era tão fácil. Seu coração também teria que ouvir o outro lado. Além do fato que os valores, se excluídos, pesariam com alguma significância nas contas mensais de todos, incluído o príncipe, como relevar o fato de que os rendimentos da plebeia, modestos sim, mas reais, seria utilizado para beneficiar inclusive alguém muito mais rico do que ela ? Não posso negar a justa e possível ( mas que nunca ocorreu de fato ) reivindicação de estar guardando um pouco disto para sua lindas plebeinhas, tão lindas, mas ainda não resguardadas pela sorte. Como deixar de pensar no futuro delas ? E se eu faltar ? E se nós faltarmos ?

Talvez, um dia, alguém que estiver lendo estas linhas pense que a resposta seja evidente. Talvez a situação, por um lado tão cômoda, de ter um filho mais privilegiado que os outros não lhe confunda. Sorte sua. Eu não tenho ainda resposta para o casal plebeu e os filhos assimétricos.

P.S. - post antigo, anacrônico agora que todos são adultos e cujo teor nunca foi por ninguém questionado, pessoal como todo o resto. Deixo publicado para registro histórico.





















































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